A linha tênue entre ficção e realidade


Num cenário literário, onde as palavras são tecidas para encantar e seduzir, é comum surgir, no meio do caminho, uma pedra, ou melhor: um fio: aquele que é divide a ficção da realidade. A trama literária, com seus recursos de descrição de cena a cena, diálogos, exposição de pontos de vista, metáforas e por aí adiante, oferece um terreno fértil para que ocorra esse choque entre o que realmente é verdade e o que é imaginação.

E isso é bom em certos aspectos: o texto ficcional, de tão bem detalhado, se transforma em algo real na cabeça de muitas pessoas. É como se tudo aquilo realmente tivesse existido. O problema é quando esse “algo real” entra em choque com a moral e os bons costumes de uma sociedade.

Lolita, do russo Vladimir Nabokov (1899 – 1977), traz a história de um quarentão que se apaixona por uma menina de doze anos: uma ninfeta em suas palavras. É narrado em primeira pessoa, rico em detalhes e observações da personagem que, para ficar próxima da “sua ninfeta”, casa-se com a mãe dela e ajuda na morte acidental da mesma. Finge ser o pai, para viverem, ao menos entre quatro paredes, como marido e mulher.

Devido à temática do livro, ou seja, a pedofilia, o livro se tornou uma das obras literárias mais escandalosas do século 20. Gerou especulações biográficas sobre o escritor, debates quentes e produziu abundante material jornalístico no mundo todo. Forjou, enfim, uma aura de escritor degenerado para Nabokov. O que não é verdade: Nabokov apenas criou uma ficção, belíssima no modo como segue a narrativa, destrinchando a alma de um pedófilo e o deixando nu, nos mais íntimos detalhes. É um clássico.

Puxando o assunto para o campo da televisão, eis que o impacto é maior, devido à influência que a telinha possui – está em quase 100% dos lares brasileiros. Há quem se solidarizou com os sofrimentos de Luciana, da novela Viver a Vida, que ficou paraplégica. Muitos entravam em seu blog, feito com relatos ficcionais, e deixavam mensagens do tipo: “Oi Lu!! Quero que saiba que tenho uma filha de dois anos. O nome dela é Clara. Ela está aprendendo a orar. Todas as vezes em que vai dormir, ela pede ao Papai do Céu, para você ficar boa. Parabéns, você é um exemplo!”.

A pergunta que faço: até que ponto deve-se tomar cuidado para escrever, com medo que ficção e realidade sejam confundidos? A ficção existe justamente para criar uma interrogação, gerar expectativas, confundir. E é ai que reside toda sua graça: o choque é necessário nesse mundo onde o real já é uma grande perturbação. Ela surge para criar o caos onde reina a tranquilidade. É, por fim, um puxão de orelha válido para refletir.

Juliano Schiavo é escritor, jornalista e estudante de ciências biológicas
Blog: www.julianoschiavo.blogspot.com
E-mail: jssjuliano@yahoo.com.br

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